Por vários fatos ocorridos em minha vida, ultimamente tenho tido lembranças muito fortes de minha infância. De família humilde, constituída de pai, mãe, dois irmãos e eu. Lembro-me muito bem de nossa cabeleireira particular - nossa mãe, dos cortes espetaculares que ela realizava em nossos cabelos e de como, depois de cortado, não tinha mais como ajeitar. Mas era o que dava para ser feito sem curso de corte. Minha mãe fazia o melhor que podia com o que tinha em mãos. Lembro-me dos meus pais nunca terem nos deixado passar fome, mesmo tendo que abrir mão de uma refeição ou outra para que nós três pudéssemos nos alimentarmos.
Risadas, demos muitas, mas, pensem comigo, três crianças autistas, logicamente sem diagnóstico; porque naquela época a informação sobre o assunto, mesmo entre os profissionais de saúde, era quase nula. Muitas vezes minha mãe correu ao médico, ora com um, ora com outro. Porém, não conseguiu nenhuma resposta que satisfizesse sua preocupação de mãe. Um chorava sem motivo, ou pelo menos assim se imaginava, outro não conseguia falar direito, principalmente quando tinha que falar a palavra “cavalo”.
Outros fatos interessantes se deram na escola. Particularmente, sempre me saí muito bem no quesito estudo, no entanto, meus irmãos são um caso à parte. Um não gostava da escola onde estudava; então, simplesmente decidiu não ir mais. Começou a colocar o uniforme, pegar o ônibus e sair para o fliperamam. Até que foi convidado a se retirar da escola. O outro não gostava de estudar mesmo, não conseguia se concentrar e assimilar aquilo que estava sendo ministrado, e suas notas nunca foram muito boas. Só lembrando que aquele o qual foi expulso da primeira escola foi estudar na mesma escola do segundo. Imaginem a reunião de pais e professores, não só as oficiais, mas também as extraordinárias, realizadas, especificamente, com o meu pai.
Há muitas coisas boas em tudo isso e que me deixam orgulhoso dessa família, a qual não é muito diferente de tantas outras famílias brasileiras. Dentre elas, está esse poder de recuperação, essa capacidade de se adaptar. Enfim, apesar de todas as dificuldades que enfrentam, com resiliência, conseguem seguir em frente tornando-se, assim, pessoas melhores.
Dois fatos muito importantes ocorreram na vida dos meus dois irmãos, isso a meu ver, que fizeram uma diferença enorme em suas vidas. No caso do primeiro, aquele que foi expulso da escola, foi descobrir-se pai de uma criança autista. Fato que o levou a encarar o seu próprio diagnóstico e a lutar pelo aprimoramento da qualidade de vida das pessoas autistas, tornando- se presidente de uma das maiores organizações em defesa dos direitos dos autistas. Já no caso do segundo, aquele que não queria saber de estudar, foi conhecer a moça que hoje é sua esposa e mãe do seu casal de filhos gêmeos – o menino autista e a menina superdotada.
Apesar de ainda muito jovens quando se conheceram, alguma coisa mudou na vida dele, pois, daquela criança que se via como coletor de lixo quando crescesse, nasceu um autodidata que correu atrás dos livros os quais havia abandonado na infância, para aprender em poucos meses o que não tinha aprendido em anos. Fez curso profissionalizante e realizou concursos públicos, Dentre todos que realizou, sua pior colocação foi um segundo lugar. Hoje mora nos Estados Unidos com sua esposa e seus filhos, pois ela é mais um daqueles casos de grandes cérebros que saem do Brasil por falta de investimento na pesquisa.
Orgulho e amor são as palavras as quais resumem tudo aquilo que sinto neste momento por essas pessoas, além de muita gratidão por fazer parte dessas histórias. Sei que muitas batalhas ainda virão, trazendo consigo derrotas e vitórias, mas no final o que importa é o aprendizado, a capacidade de se reinventar, mais do que isso ainda, o poder de construir a melhor versão de nós mesmos.
Por Jhony Cordeiro, autista, 43 anos, policial civil e irmão do Fábio Cordeiro @aspiesincero
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